Prefácio
Nota do Tradutor
No início do texto, Srta. Mason cita o conto "Ondina" escrito por Motte Fouqué. Para entendermos a analogia feita por ela é importante sabermos que a protagonista da história é uma ninfa aquática que, ao experimentar o amor humano, adquire uma alma imortal e passa a sentir emoções profundas. Ela utiliza essa história como metáfora para explicar como o conhecimento verdadeiro tem o poder de "acordar" a mente e o espírito humano.
Prefácio
O conto “Ondina” de la Motte Fouqué parece estar muito distante da ideia de uma “educação liberal”, mas há um ponto em comum entre os dois; uma alma que desperta dentro de uma ninfa aquática ao toque do amor; portanto, tenho de falar do despertar de uma “alma comum” ao toque do conhecimento.
Oito anos atrás, a “alma” de uma classe de crianças em uma escola de uma vila de mineradores despertou simultaneamente com esse toque mágico e permaneceu acordada. Sabemos que a religião pode despertar almas, que o amor faz novo o homem, que o chamado de uma vocação pode fazê-lo, e na era da Renascença, as almas dos homens, a alma comum, despertava para o conhecimento: mas esse apelo raramente alcança a alma moderna; e, apesar da alegria em participar das aulas e receber notas em todas as nossas escolas, acredito que o ardor pelo conhecimento nas crianças dessa vila de mineração é um fenômeno que indica novas possibilidades.
Muitos milhares de crianças do Império já haviam experimentado essa conversão intelectual, mas eles eram filhos de pessoas instruídas. Descobrir que filhos de mineradores eram igualmente receptivos, parecia abrir uma nova esperança para o mundo. Pode ser que as almas de todas as crianças estejam aguardando o chamado do conhecimento para despertá-las para uma vida encantadora.
Foi assim que a falecida Sra. Francis Steinthal, que foi a feliz instigadora do movimento nas escolas comunitárias, escreveu: “Pense no significado disso na vida das crianças - vidas disciplinadas, sem greves desregradas, justiça, fim da guerra de classes, intelectos desenvolvidos e nenhum mercado para literatura impura e de baixa qualidade! Nós, ou melhor, eles, viverão em um mundo redimido.” Isso foi escrito em um momento de entusiasmo ao ouvir que um certo Conselho do Condado havia aceitado a proposta de trabalho pedagógico para essa primeira escola. O entusiasmo vê antecipadamente os campos prontos para a colheita, mas, de fato, é provável que o evento justifique as altas expectativas. Embora menos de nove anos tenham se passado desde que essa escola pioneira fez esta ousada tentativa, muitas milhares de crianças que estão subordinadas aos Conselhos de Condado já estão descobrindo que “os estudos servem para o deleite”.
Sem dúvida, as crianças são bem ensinadas e felizes em suas lições, e isso é especialmente verdadeiro na escola mencionada acima; no entanto, tanto os professores quanto as crianças encontram uma diferença imensurável entre o interesse casual despertado por notas, lições orais agradáveis e outros artifícios escolares, e o tipo de avidez constante pelo conhecimento que vem quando uma alma desperta.
As crianças converteram os inspetores escolares: “E os ingleses!”, disse um deles com espanto ao ouvir suas longas, gráficas e dramáticas narrações do que haviam ouvido. Durante os últimos trinta anos, nós (incluindo muitos colegas de trabalho) tivemos milhares de crianças, em nossas salas de aula, em casa e em outros lugares, trabalhando de acordo com a oração de Dean Colet para a St Paul's School: “Ore para que as crianças prosperem em uma vida boa e em boa literatura”. Provavelmente, todas as crianças ensinadas dessa forma crescerão com princípios e ocupações que as tornarão cidadãs felizes e úteis.
Gostaria de acrescentar que não temos nenhum objetivo a ser alcançado. Nosso objetivo é o bem público, e os métodos propostos são aplicáveis em qualquer escola. Meu objetivo ao oferecer este livro ao público é exortar todos os que se preocupam com a educação sobre alguns princípios importantes que geralmente são desconhecidos ou desconsiderados; e alguns métodos que, como o banho no Jordão, são simples demais para serem recomendados ao “público”. No entanto, esses princípios e métodos tornam a educação totalmente eficaz.
Gostaria de acrescentar que nenhuma das afirmações que apresentei no livro a seguir se baseia apenas em opiniões. Cada ponto foi comprovado em milhares de casos, e o método pode ser visto em ação em muitas escolas, grandes e pequenas, de ensino primário e secundário¹.
Tenho que pedir a paciência do leitor que é solicitado a se aproximar de um único ponto final por vários caminhos, e não posso fazê-lo melhor do que com as palavras do velho Fuller: “Bom leitor. Suspeito que eu possa ter escrito algumas coisas duas vezes, se não com as mesmas palavras, mas com o mesmo sentido, o que desejo que você considere favoravelmente, já que, como você pode pensar, foi difícil e enfadonho para mim, em um número tão grande de frases independentes, descobrir as repetições... Além do incômodo, tal busca me custaria mais tempo do que posso dispor; pois meu cálice de vida está acabando, não posso desperdiçar uma areia sequer, nem perder um minuto catando palhas... Mas, para concluir, uma vez que em matéria de orientação, Preceito deve estar sobre Preceito, Linha sobre Linha, peço desculpas com as palavras de São Paulo: “Tornar a escrever-vos as mesmas recomendações, a mim por certo não me é penoso, e a vós vos é conveniente." [Fil 3, 1]
Não estou disposta a encerrar o que provavelmente será o último prefácio que serei chamada a escrever sem um reconhecimento muito grato à colaboração dos amigos que estão trabalhando comigo no que nos parece ser uma grande causa. A Parents' National Educational Union cumpriu sua missão, conforme declarado em seu primeiro prospecto, de forma nobre e generosa. “A organização existe para o benefício de pais e professores de todas as classes”; e, nos últimos oito anos, ela assumiu o trabalho e as despesas de uma propaganda enérgica em favor das escolas de ensino fundamental, das quais cerca de 150 estão agora trabalhando nos programas da Parents Union School. Durante o último ano, um desenvolvimento agradável e promissor ocorreu sob os cuidados da Sra. Franklin. Foi sugerido ao diretor de uma escola do Conselho do Condado de Londres que formasse uma associação dos pais das crianças daquela escola, oferecendo-lhes certas vantagens e exigindo um pequeno pagamento para cobrir as despesas. Na primeira reunião, um dos pais presentes se levantou e disse que estava muito desapontado. Ele esperava ver uns trezentos pais e havia apenas uns sessenta presentes! Os promotores da reunião, no entanto, ficaram muito satisfeitos em ver os sessenta, a maioria dos quais se tornou membro da Associação de Pais, e o trabalho continua com ânimo.
Somos profundamente gratos a muitos colegas de trabalho, mas nem mesmo aquele cavalheiro muito cortês que escreveu uma carta aos romanos poderia fazer agradecimentos adequados a todos aqueles a quem devemos o sucesso de um movimento cuja lógica tento deixar clara nas páginas seguintes.
Charlotte M. Mason,
Casa de Educação, Ambleside. 1922.
Sinopse breve da filosofia educacional apresentada neste volume
“Assim que a verdade chega à vista da alma, mas a alma a reconhece como sua primeira e velha conhecida.”
“A consequência da verdade é grandiosa; portanto, o discernimento dela não deve ser negligente.” (WHICHCOTE).
1. As crianças nascem pessoas.
2. Elas não nascem boas ou más, mas com possibilidades para o bem e para o mal.
3. Os princípios de autoridade, por um lado, e de obediência, por outro, são naturais, necessários e fundamentais; mas...
4. Esses princípios são limitados pelo respeito devido à personalidade² das crianças, que não deve ser invadida pelo uso direto do medo ou do amor, da sugestão ou da influência, ou pelo uso indevido de qualquer desejo natural.
5. Portanto, estamos limitados a três instrumentos educacionais: a atmosfera do ambiente, a disciplina do hábito e a apresentação de ideias vivas. O lema da Parents’ National Educational Union é: “A educação é uma atmosfera, uma disciplina e uma vida”.
6. Quando dizemos que “educação é uma atmosfera”, não queremos dizer que a criança deva ser isolada no que pode ser chamado de “ambiente infantil” especialmente adaptado e preparado, mas que devemos levar em conta o valor educacional de sua atmosfera doméstica natural, tanto no que diz respeito a pessoas quanto a coisas, e devemos deixá-la viver livremente em suas condições adequadas. Rebaixar o mundo ao nível da criança é uma atitude que a entorpece³.
7. Quando dizemos que “a educação é uma disciplina”, estamos nos referindo à disciplina dos hábitos, formados de maneira definitiva e bem pensada, sejam eles hábitos mentais ou corporais. Os fisiologistas nos falam da adaptação das estruturas cerebrais às linhas de pensamento habituais, ou seja, aos nossos hábitos⁴.
8. Ao dizer que “educação é uma vida”, está implícita a necessidade de sustento intelectual e moral, bem como físico. A mente se alimenta de ideias e, portanto, as crianças devem ter um currículo generoso.
9. Defendemos que a mente da criança não é um mero receptáculo para guardar ideias, mas sim, se é que se pode permitir a comparação, um organismo espiritual, com apetite para todo conhecimento. Essa é sua dieta adequada, com a qual está preparada para lidar, e que pode digerir e assimilar como o corpo faz com os alimentos.
10. Uma doutrina como, por exemplo, a herbartiana⁵, de que a mente é um receptáculo, coloca a ênfase da educação (a preparação do conhecimento em pequenas porções apetitosas devidamente ordenadas) sobre o professor. As crianças ensinadas com base nesse princípio correm o risco de receber muito ensino com pouco conhecimento; e o lema do professor é: 'o que uma criança aprende importa menos do que como ela aprende'.
11. Mas nós, acreditando que a criança, em condições regulares, tem poderes mentais que a capacitam a lidar com todo o conhecimento que lhe é próprio, damos a ela um currículo completo e generoso, cuidando apenas para que todo o conhecimento que lhe é oferecido seja vital, ou seja, que os fatos não sejam apresentados sem as ideias que os informam. A partir dessa concepção, surge nosso princípio de que,--
12. “A educação é a ciência das relações”, ou seja, a criança tem relações naturais com um grande número de coisas e pensamentos: por isso, nós a treinamos com exercícios físicos, conhecimentos sobre a natureza, artesanato, ciência e arte, e com muitos livros vivos, pois sabemos que nosso objetivo não é ensinar-lhe tudo sobre qualquer coisa, mas ajudá-la a tornar válidas tantos quantos forem possíveis...
“Aquelas afinidades primordiais (...) Que ajustam nossa nova existência às coisas existentes.”⁶
13. Ao elaborar um plano de estudos para uma criança normal, de qualquer classe social, três pontos devem ser considerados:
- Ela precisa de muito conhecimento, pois a mente precisa de alimento suficiente tanto quanto o corpo.
- O conhecimento deve ser variado, pois a mesmice na dieta mental não cria apetite (ou seja, curiosidade)
- O conhecimento deve ser transmitido em uma linguagem bem escolhida, pois sua atenção responde naturalmente ao que é transmitido na forma literária.
14. Como o conhecimento não é assimilado até que seja reproduzido, as crianças devem “recontar” depois de uma única leitura ou escuta: ou devem escrever sobre alguma parte do que leram.
15. Insiste-se em uma única leitura, porque as crianças têm naturalmente grande poder de atenção; mas essa força é dissipada pela releitura de trechos e também por questionários, resumos e coisas do gênero.
Agindo com base nesses e em alguns outros pontos do comportamento mental, descobrimos que a capacidade de educação das crianças é enormemente, maior do que se supunha até então e depende muito pouco de circunstâncias como hereditariedade e ambiente.
A exatidão dessa afirmação também não se limita a crianças inteligentes ou a crianças de classes mais instruídas: milhares de crianças em escolas de ensino fundamental respondem livremente a esse método, que se baseia no comportamento da mente.
16. Há dois guias para o autogerenciamento moral e intelectual a serem oferecidos às crianças, que podemos chamar de “o caminho da vontade” e “o caminho da razão”.
17. O caminho da vontade: As crianças devem ser ensinadas (a) a distinguir entre “eu desejo” e “eu quero”. (b) Que a maneira eficaz de querer é desviar nossos pensamentos daquilo que desejamos, mas não queremos. (c) Que a melhor maneira de desviar nossos pensamentos é pensar ou fazer alguma coisa bem diferente, divertida ou interessante. (d) Que depois de descansar um pouco dessa maneira, a vontade retorna ao seu trabalho com novo vigor. (Esse auxiliar da vontade nos é familiar como diversão, cuja função é nos aliviar por um tempo do esforço da vontade, para que possamos “querer” novamente com mais força. O uso da sugestão como auxílio para a vontade deve ser depreciado, pois tende a entorpecer e estereotipar o caráter. Parece que a espontaneidade é uma condição de desenvolvimento e que a natureza humana precisa da disciplina do fracasso, assim como do sucesso).
18. O caminho da razão: Ensinamos às crianças, também, a não se apoiarem (com muita confiança) em seu próprio entendimento; porque a função da razão é dar uma demonstração lógica (a) da verdade matemática, (b) de uma ideia inicial, aceita pela vontade. No primeiro caso, a razão é, praticamente, um guia infalível, mas no segundo, nem sempre é um guia seguro; pois, seja essa ideia certa ou errada, a razão a confirmará por meio de provas irrefutáveis.
19. Portanto, as crianças devem ser ensinadas, à medida que se tornarem maduras o suficiente para entender tal ensinamento, que a principal responsabilidade que recai sobre elas como pessoas é a aceitação ou rejeição de ideias. Para ajudá-las nessa escolha, damos a elas princípios de conduta e uma ampla gama de conhecimentos adequados a elas. Esses princípios devem salvar as crianças de alguns dos pensamentos soltos e das ações descuidadas que fazem com que a maioria de nós viva em um nível mais baixo do que o é preciso.
20. Não permitimos que se crie uma separação entre a vida intelectual e a vida “espiritual” das crianças, mas ensinamos a elas que o Espírito Divino tem acesso constante a suas almas e é seu Auxiliador Contínuo em todos os interesses, deveres e alegrias da vida.
Notas:
¹ Escolas secundárias oferecem formação para crianças de 11 a 18 anos.
² Dignidade.
³ Aliena.
⁴ Isto é, o cérebro solidifica aquilo que é repetido através de hábitos.
⁵ Que se refere a Herbart, pedagogo nascido no séc. XVIII cujo trabalho influenciou a teoria psicanalítica de Freud
⁶ "Aquelas afinidades fundamentais (...) que integram nossa nova existência ao mundo ao nosso redor."