Introdução III - B

As crianças não vêm ao mundo sem provisão para lidar com o conhecimento, assim como não vêm sem provisão para lidar com o alimento. Elas trazem consigo não apenas o apetite intelectual e o desejo pelo conhecimento, mas também um poder enorme e ilimitado de atenção, ao qual a capacidade de retenção (memória) parece estar ligada [p. 15], assim como cada etapa do processo digestivo sucede a outra até a absorção final. "Sim", dirão, "elas têm capacidade para ser muito curiosas e, consequentemente, atentas, mas só ocasionalmente podem ser induzidas a prestar atenção às lições." Não seria essa a falha das aulas? E elas não deveriam ser planejadas com o mesmo cuidado em relação ao comportamento da mente quanto as refeições das crianças o são em relação às necessidades físicas? 


Vamos considerar esse comportamento sob alguns aspectos. A mente se ocupa apenas de pensamentos, imaginações, argumentos racionais; ela se recusa a assimilar os fatos, a menos que estejam combinados com o alimento intelectual apropriado. A mente, por ser ativa, se cansa de permanecer na atitude passiva de ouvinte e se entedia tanto, no caso das crianças, com a tagarelice dispersa de um professor que fala demais quanto, no caso de um adulto, com conversas vazias. A mente tem uma preferência natural pela forma literária; diante de uma apresentação mais ou menos literária, sua curiosidade se torna imensa e abraça uma enorme variedade de assuntos. 


Afirmo essas coisas sobre "a mente" porque parecem ser verdadeiras em relação à mente de todas as pessoas. Tendo observado esses e outros padrões do comportamento mental, restava aplicar as conclusões a que cheguei em um currículo experimental para escolas e famílias. As lições expositivas foram, em grande parte, descartadas; um grande número de livros sobre diversas matérias foram selecionados para leitura durante o turno escolar matutino; o volume de trabalho era tanto que só havia tempo para uma única leitura; toda leitura era avaliada por meio de uma narração — seja oral ou escrita — do texto completo ou de um trecho determinado. Crianças que trabalham com esse método lembram-se, meses depois, do que leram, e são notáveis por sua capacidade de concentração (atenção); têm pouca dificuldade com ortografia ou redação e tornam-se pessoas bem-informadas e inteligentes⁷. [p. 16] 


Mas dirão: ler ou ouvir a leitura de vários livros, capítulo por capítulo, e depois narrar ou escrever o que foi lido, ou parte dele — tudo isso não passa de um exercício de memorização. Será que o crítico lerá, antes de apagar a luz, um artigo de destaque de um jornal, digamos, ou um capítulo de Boswell, Jane Austen, ou um dos Ensaios de Lamb; e então, para se pôr para dormir, narrará silenciosamente o que leu? Ele não ficará satisfeito com o resultado, mas perceberá que, durante o ato de narrar, todos os poderes da sua mente entram em ação; que certos pontos que ele não havia percebido antes são revelados; que consegue visualizar o todo e que o conteúdo ganha forma de maneira extraordinária; de fato, aquela cena ou argumento torna-se parte de sua experiência pessoal; ele sabe, assimilou o que leu. Isso não é memorização. Para memorizar, repetimos várias vezes um trecho ou uma série de pontos ou nomes, com a ajuda dos recursos que conseguimos inventar; memorizamos uma sequência de fatos ou palavras, e essa nova aquisição cumpre seu propósito por um tempo, mas não é assimilada; uma vez cumprida sua função, esse conhecimento desaparece. Esse é o tipo de memorização por meio do qual os exames são aprovados com mérito. Não tentarei explicar (nem compreender!) essa capacidade de memorizar; sem dúvida, ela tem sua utilidade secundária na educação, mas não deve substituir o agente principal: a atenção. 


Há muito tempo, um amigo de longa data, dado à filosofia, costumava citar um axioma: “A mente não pode conhecer nada, exceto aquilo que é capaz de produzir como resposta a uma pergunta formulada por ela mesma.” Nunca consegui rastrear a origem dessa frase, mas uma convicção de sua importância tem crescido dentro de mim ao longo dos últimos quarenta anos. Essa ideia, de certo modo, exclui as perguntas [p. 17] externas (isso não se aplica, é claro, ao uso socrático das perguntas com fins de juízo moral); e é necessária para a certeza intelectual, para o próprio ato de conhecer. Por exemplo, para fixar uma conversa ou um episódio, costumamos “repassá-lo em nossa mente”; ou seja, a mente se submete ao processo de autoquestionamento a que me referi. É o que ocorre ao narrar um trecho lido: cada novo incidente ou afirmação surge porque a mente se pergunta: "O que vem a seguir?" Por essa razão, é importante que apenas uma leitura seja permitida; tentativas de memorização enfraquecem a atenção — a atividade própria da mente. Se for desejável fazer perguntas para enfatizar pontos específicos, estas devem ser feitas depois, e não antes ou durante a narração. 


Nossos psicólogos mais avançados nos dão suporte neste ponto; eles também defendem que, "em vez de uma coleção de faculdades, há uma única atividade subjetiva — a atenção"; e afirmam ainda que existe “um fator comum em toda atividade psíquica: a atenção”. ⁸ Meu acréscimo pessoal é que a atenção é infalível, imediata e constante quando o conteúdo é apresentado de acordo com as exigências intelectuais da criança, desde que essa apresentação seja feita com a concisão, objetividade e simplicidade próprias da literatura. 


Outro ponto deve ser considerado: o intelecto requer um impulso moral, e todos nós ativamos melhor nossa mente quando há um “dever” implícito no contexto. Para as crianças em sala de aula, esse “dever” se manifesta na certeza de que terão de narrar ou escrever sobre o que leram, sem a possibilidade de “consultar” ou recorrer a outros artifícios dos ociosos. As crianças acham o ato de narrar tão prazeroso em si que raramente é necessária qualquer insistência por parte do professor. [p. 18] 


Apresento aqui uma cadeia completa da filosofia educacional que me esforcei por desenvolver — uma filosofia que, ao menos, tem o mérito de ser bem-sucedida na prática. Algumas poucas sugestões, como já mencionei, adotei e apliquei, mas espero ter conseguido sistematizar o todo e fazer da educação aquilo que ela deve ser: um sistema de filosofia aplicada. Tive, no entanto, o cuidado de me abster do uso de termos filosóficos. 


Eis, em resumo, como essa abordagem funciona:  


Uma criança é uma pessoa com as exigências e capacidades espirituais de uma pessoa. 


O conhecimento "nutre" a mente assim como o alimento nutre o corpo. 


Uma criança precisa tanto de conhecimento quanto de alimento. Ela é dotada do desejo pelo Conhecimento — isto é, a Curiosidade;


com o poder de apreender o Conhecimento — isto é, atenção;


com poderes mentais para lidar com o Conhecimento sem socorro externo, tais como a imaginação, a reflexão, e o juízo;


com interesse inato em todo Conhecimento de que precisa enquanto ser humano; com poder de reter e comunicar tal Conhecimento; e assimilar tudo quanto lhe seja necessário.


A criança requer que, na maioria das vezes, o Conhecimento lhe seja comunicado em forma literária;


e reproduz esse Conhecimento, tocando-o com sua própria personalidade — assim, sua reprodução torna-se original.


A capacidade natural para a apropriação e assimilação do Conhecimento é suficiente e não exige estímulo algum; porém, algum controle moral é necessário para assegurar o ato da atenção. [p.19]


A criança recebe esse controle na certeza de que será chamada a recontar o que leu.


As crianças têm direito ao melhor que possuímos; por isso, seus livros de estudo devem ser, na medida do possível, os nossos melhores livros.


Elas se cansam de falatórios, e perguntas as entediam; por isso, devem poder usar seus livros por si mesmas; elas pedirão tal ajuda conforme desejarem.


Elas necessitam de uma grande variedade de Conhecimento — sobre religião, as humanidades, ciência, arte;
portanto, devem ter um currículo amplo, com uma quantidade definida de leitura para cada curto período de estudo.
O professor oferece direção, empatia nos estudos, uma palavra vivificadora aqui e ali, auxílio na realização de experimentos, etc., além do ensino habitual de línguas, ciências experimentais e matemática.


Quando realizados sob essas condições, os “estudos servem para o deleite”, e a consciência do progresso diário é entusiasmante tanto para o professor quanto para os alunos. 


O leitor poderá dizer com razão: "Eu já conhecia tudo isso e sempre segui, mais ou menos, esses princípios"; ao que posso apenas responder apontando os resultados incomuns que obtemos ao aderir, não “mais ou menos”, mas com rigor, aos princípios e práticas que indiquei. Suponho que as dificuldades sejam do mesmo tipo das que Lister teve de enfrentar; todos os cirurgiões sabiam que seus instrumentos e acessórios precisavam ser mantidos limpos, mas foi a adoção do tratamento antisséptico desse grande cirurgião que resultou na salvação de milhões de vidas; ou seja, da substituição dos métodos antigos, aplicados “mais ou menos”, por princípios exatos escrupulosamente aplicados. 

 

Se o caminho que tracei é, de fato, o único correto, ainda precisa ser mais amplamente testado do que nos milhares de casos em que já demonstrou êxito; mas é certo que a educação tem sido laxa e incerta por falta de princípios sólidos aplicados com precisão. Chegou o momento de tomar uma decisão: depositamos nossa fé na “civilização”, orgulhamo-nos do nosso progresso e, talvez, nenhuma das dores trazidas pela guerra seja mais aguda do que aquela causada pelo completo colapso da civilização que tomávamos por sinônimo de educação. Agora compreendemos melhor e voltamos a recorrer aos nossos instintos humanos saudáveis e aos mandatos divinos. A parte educável da pessoa é sua mente. O treino dos sentidos e dos músculos é, propriamente falando, apenas treino — não educação. A mente, assim como o corpo, requer quantidade, variedade e regularidade no alimento que lhe é oferecido. Assim como o corpo, a mente é capaz de receber e assimilar por meio da atenção e da reflexão. Do mesmo modo, rejeita a comida insípida, seca e desagradável — isto é, seu alimento precisa ser apresentado em forma literária. A mente se restringe a um só tipo de alimento: é nutrida por ideias e só absorve fatos quando estes estão ligados às ideias vivas que os sustentam. Crianças educadas segundo esses princípios respondem de maneira surpreendente, desenvolvendo capacidade, caráter, expressão, iniciativa e senso de responsabilidade. São, de fato — mesmo ainda crianças — cidadãos bons e reflexivos. 


Neste volume, procurei apresentar os princípios e métodos sobre os quais esse tipo de educação tem sido aplicado com êxito, e acrescentei capítulos que ilustram a história de um movimento cujo objetivo é, nas palavras de Comenius, “Todo o conhecimento para todos os homens.” Além disso, tive permissão para incluir a crítica⁹ de diversos professores, diretores [p. 21] e outros profissionais acerca do funcionamento prático do esquema. 


É motivo de grande alegria ver que o caminho está aberto para oferecer a todas as classes uma base comum de pensamento e conhecimento, incluindo um repertório compartilhado de referências literárias e históricas — uma posse que tem o curioso poder de unir os homens. E, além disso, é um imenso avanço estarmos próximos de proporcionar às classes trabalhadoras, apesar de suas oportunidades limitadas, aquela estabilidade mental e magnanimidade de caráter que são os verdadeiros frutos e o teste infalível de uma EDUCAÇÃO LIBERAL. 


Devo restringir-me, neste volume, à ampliação e ilustração de algumas proposições que me empenhei em expor nesta introdução. 


[p.22] 

 

⁷ A pequena Escola Prática vinculada à Casa de Educação (com alunos de seis a dezoito anos) oferece oportunidades para testar os programas de trabalho enviados a cada trimestre, assim como os exames aplicados no final de cada período. O trabalho de cada série é facilmente realizado durante as horas de aula da manhã. 

⁸ Cito novamente o artigo sobre Psicologia na Encyclopædia Britannica

⁹ Ver Algumas Discussões sobre o Método