A Arte da Narração - Capítulo 2

Know and Tell por Karen Glass - Capítulo 2 

“No ato de narrar, todo o poder da mente entra em ação”. 

 

A prática da Narração é muito simples, você não precisa de instrumentos especiais ou de instrução formal sobre como trabalhar com a narração. Você lê para uma criança pequena uma página de um livro e para uma criança mais velha, talvez um capítulo inteiro. Depois você simplesmente diz “me conte sobre isso”, “me fale sobre a vida no Egito Antigo”, “me fale sobre o ciclo da água”, “me diga o que tal personagem fez depois”. E por aí vai.   

A narração como ferramenta de educação apareceu há muito tempo, com os educadores gregos que formalizaram o estudo da retórica. O estudo formal de retórica é extremamente complexo, mas eles começaram a perceber que uma boa retórica poderia ser alcançada de forma mais natural. 


Foi percebido que da mesma forma que para aprender a falar palavras e frases as crianças precisam ouvir aqueles que já falam, nós podemos aprender retórica através do ouvir e ler, do estar em contato com boa retórica. 


Para a narração isso vai funcionar da mesmíssima forma. A narração é um aspecto da retórica então você não precisa de estudos especiais, você não precisa de regras para te guiar você apenas vai ler (ou vai ouvir) e narrar, e com isso a sua proficiência vai melhorar.   


O uso consistente da narração constrói hábitos mentais de pensamento e de raciocínio que vão além da sala de aula. O hábito de prestar atenção, de ordenar seus conhecimentos e de articulá-los de forma lógica são atividades mentais que exigem muito do nosso cérebro e o aluno que usa a narração regularmente acaba desenvolvendo essas habilidades e podendo usá-las em outras ocasiões que estão além do âmbito educacional e da esfera da sala de aula. Esse aluno acaba se tornando eloquente, falando melhor e escrevendo melhor. 


A narração é essencial na educação. Muitas vezes tendemos a subestimar o poder da narração, justamente por ser algo tão “simples”. Nós achamos que é repetitivo, que toma um tempo que poderia estar sendo usado para aprender coisas novas, como novas leituras. E de fato, a narração toma tempo, porém esse tempo é bem investido. 


Quando a criança narra o que aprendeu, ela não fala literalmente tudo o que o professor ensinou, mas reconta o que julga essencial e central daquilo que aprendeu em sua própria visão, com suas próprias palavras da forma como compreendeu, além de acrescentar os detalhes dos quais se lembrar. 


Esse exercício de transformar aquilo que recebeu, dentro da própria mente, e recontar com as próprias palavras demonstra o quanto que ele aprendeu, o quanto que ele compreendeu do que foi lido. O aluno que aprendeu de verdade é capaz de narrar aquilo usando as próprias palavras. 


Narração e conhecimento são intrinsecamente relacionados. Você só consegue narrar o que você sabe. Na narração, a única pergunta é “o que você pode me dizer sobre isso?” Então quando a criança de fato conhece determinado conteúdo, ela sabe fazer uma narração sobre ele. Os alunos acabam percebendo que só serão capazes de responder se prestarem atenção. Não haverá uma lista de possíveis respostas na folha para que escolham a correta. Com isso, promove-se estudantes engajados, bem mais atentos nas lições. 

 

A narração engaja, envolve toda a sua mente 

 


Quando você termina uma leitura e pede que a criança faça a narração, é aí que começa o trabalho de verdade na mente dela. Porque não basta simplesmente mencionar as coisas. O material geral do que foi ensinado precisa estar ordenado de forma que faça sentido. E assim desenvolve-se essa habilidade de contar as coisas de forma coerente. 


É claro que cada aluno tem o seu jeito de narrar. Isso é perfeitamente normal. Cada aluno vai contar do seu jeito e nenhuma narração será igual à outra. Porém, apesar de ser uma atividade simples e muito flexível, a narração requer muito exercício mental. 


No início, quando você começar o trabalho de narração com o seu filho ou com seu aluno, pode ser difícil, as narrações podem não ser boas. É comum e esperado que isso aconteça porque é um exercício novo, porém com o tempo as narrações vão melhorar. 


Diz-se que a narração exige um esforço mental porque muitas coisas são necessárias para que uma narração seja boa. É preciso classificar os pensamentos em ordem de relevância para o tópico em estudo, pensar em estrutura, formular frases e, finalmente, articular os pensamentos ordenados em frases adequadas e em vocabulário específico. Por isso narrar envolve todo o poder da sua mente, cada aspecto do seu pensar. 


Para jogar basquete há muitas coisas envolvidas. Você precisa coordenar os esforços do seu sistema nervoso, do seu esqueleto e dos seus músculos, que recebem a energia do seu sistema digestivo e do seu sistema endócrino. Isso é muito complexo para seu corpo, não é algo tão simples assim. A narração é a mesma coisa. Só que envolve vários aspectos complexos da nossa mente. 


É claro que quando você está narrando, você não pensa em tudo isso conscientemente. Na verdade, acontece naturalmente e você vai desenvolvendo isso naturalmente também, através da prática, assim como no basquete. Esse ato vai se tornando natural e cada vez melhor. 


Assim como no basquete, quando a criança começar a praticar, ela não será muito boa, mas com a prática constante, ela vai melhorar. A prática regular da narração cultiva o hábito da atenção, de ordenar o conteúdo, de compreender e recontar. 


Quando a criança tem a oportunidade de contar o que ela aprendeu, o conhecimento começa a ser digerido, principalmente quando lhe é dada a oportunidade de, não apenas contar, mas ensinar para alguém que realmente não saiba o que ela tem a dizer, que está, de fato, interessado e ouvindo. 

 

Benefícios da Narração a longo prazo 

 

Esses benefícios da narração não serão mensurados imediatamente. É necessário tempo para que percebamos os efeitos dessa prática. Da mesma forma que brincar de pegar a bola ou de chutar uma bola de futebol com o pai regularmente pode tornar o seu filho um atleta um dia, o hábito de narrar vai transformar o seu filho eventualmente num pensador, num escritor. Então a chave para o sucesso do método está na paciência e na persistência. O hábito é o que vai gerar frutos. Vamos aos benefícios: 

 

  • Quando a criança narra, ela começa a conectar o que aprendeu agora ao que já havia aprendido anteriormente; 
  • O hábito de narrar regularmente melhora o vocabulário e ajuda o aluno a usar frases mais complexas: quem presta atenção no que foi lido, acaba incorporando um pouco do vocabulário do autor, pode ser uma palavra ou aquelas frases que chamaram a atenção. Além disso, quando a criança ouve uma frase complexa e na hora de narrar a torna uma frase mais simples, ela acaba intuitivamente ganhando conhecimento de como elaborar uma frase mais complexa novamente. 
  • Narrar traz um estímulo ao raciocínio, à capacidade de criar conexões entre as coisas aprendidas, não apenas em uma matéria, mas entre todas. Através dela aprende-se a sintetizar os pensamentos. 
  • Com a narração cultivamos pensadores, capazes de procurar conexões: O pensador está sempre notando similaridades entre as coisas que vê e aprende. A isso dá-se o nome de pensamento sintético. Pensar sinteticamente é o oposto de pensar analiticamente já que pensar analiticamente é ser capaz de separar aquilo que você aprendeu, quebrando as conexões. 

 

Pensamento Sintético e Pensamento Analítico 

 

Pensar analiticamente não é ruim! É uma ótima ferramenta, muito útil, porém a análise é melhor usada quando ela vem depois que o entendimento integrado já aconteceu. Então primeiro a criança precisa aprender a integrar todo o conhecimento e a conectar tudo o que aprende para que depois ser capaz quebrar esse conhecimento nos fragmentos que ela precisa analisar. A análise é bem feita depois que já se consolidou o nosso conhecimento. 


O pensamento analítico é muito valorizado hoje em dia, mas não podemos apressar as coisas, querendo que as crianças separem seus conhecimentos em caixinhas antes que eles tenham aprendido a colocar isso tudo junto, a conectar tudo. 


As perguntas objetivas, com as quais muitos de nós estamos tão acostumados, esperam uma resposta com uma informação isolada e não encorajam o pensamento sintético. A narração por outro lado requer que a criança pense sobre todo o material que ela aprendeu e produza uma resposta com detalhes relevantes para aquilo que foi pedido. O que ela fala precisa fazer sentido naquele contexto. 


Vamos a um exemplo prático: Se como professora de ciências, pergunto ao aluno “Quantas luas possui Júpiter?”, a resposta que esse aluno pode dar é apenas uma. Eu estou pedindo um pedaço de informação isolado de tudo o que ele aprendeu. É diferente de perguntar "O que você sabe sobre Júpiter? Ou melhor ainda “O que você pode me contar sobre os planetas do nosso Sistema Solar?” ou “O que você sabe sobre o nosso Sistema Solar?” quando eu faço essas perguntas abertas o meu aluno pode me dar um mundo de informações e ele é forçado a criar conexões na cabeça dele que atendam a minha pergunta. 


Pensar sinteticamente é desenvolver uma relação pessoal com aquele material que você está aprendendo, desenvolver um nível de familiaridade com aquilo, que permite que a criação de conexões entre as coisas que já aprendemos e as que vamos aprender. 


É de grande importância permitir que o próprio aluno crie as conexões. Não caia na tentação de fornecer as conexões que você gostaria que ele fizesse. Essas ligações só serão reais se o próprio aluno as perceber. 


A autora do livro conta que teve a oportunidade de fazer uma palestra sobre o pensamento sintético em que havia vários adolescentes na plateia, os quais foram educados em casa e foram ensinados através das narrações. Na palestra ela explicava essa diferença entre pensar sinteticamente e pensar analiticamente. Os jovens que estavam lá ficaram surpresos com o fato de pensar sinteticamente ser a exceção. Eles achavam que todos pensavam dessa forma. 


A verdade é que as pessoas perderam essa capacidade de pensar sinteticamente, de criar conexões, porque o conhecimento que não é facilmente mensurado e testado, é muitas vezes ignorado nas escolas modernas. A triste realidade é que não está sendo percebido se as crianças de fato aprendem, se elas estão de fato adquirindo conhecimento ou se estão apenas memorizando respostas para colocar nos exames e conseguir a aprovação. 


Isso aconteceu comigo, isso provavelmente aconteceu com você também. A forma como fomos educados, muito provavelmente não foi através de narrações, mas sim através desse incentivo ao pensamento analítico e muitas vezes, ao não pensamento. 


O simples pedido “me conte sobre isso”, através dos anos, será o fundamento para que o aluno se torne um adulto capaz de elaborar uma resposta satisfatória e mais complexa a “compare a liderança de George Washington com a liderança de Napoleão Bonaparte” ou “explique como o fechamento de um negócio pode afetar a economia de toda uma cidade”. Anos e anos de respostas objetivas não são capazes de gerar uma resposta que compare George Washington com Napoleão Bonaparte satisfatoriamente. Essas perguntas requerem um entendimento e um pensamento mais profundo e isso só será possível se esse pensamento estiver baseado em conhecimento, em real entendimento dos princípios que são liderança e economia. 


Esse tipo de pensamento que conecta princípios gerais a situações concretas não pode ser ensinado de forma mecânica. Não existe um livro texto, um livro de trabalho ou um currículo escrito, que possa produzir pensadores capazes de criar essas respostas. Elas só virão através do desenvolvimento, do constante exercício de você fornecer alimento e exercício para a mente e é isso que o hábito da narração faz com os nossos alunos. 

 

Conclusão 

 

Os métodos educacionais atuais têm falhado miseravelmente em estabelecer esse tipo de pensamento sintético nas pessoas. A maior parte de nós escreve mal, pensa mal e não é capaz de pensar sinteticamente porque não desenvolveu essa habilidade. Muitas vezes tentamos corrigir o “escrever mal”, por exemplo. Aí começamos a praticar a escrita e copiar modelos de redações para nos desenvolvermos nessa área, mas o problema não está puramente na escrita. O problema está na nossa forma de pensar. Precisamos desenvolver essa habilidade de pensamento sintético e a narração nos dá a oportunidade de retomar esse alto nível de pensamento, tanto para as próximas gerações como para nós mesmos. 

Não é tarde para nós. Podemos correr atrás disso através do hábito da narração também. Você que está lendo esse texto, tente narrar para alguém tudo que compreendeu dele. Esse é o começo para criar o hábito da narração. 


Mas não se preocupe se você tiver dificuldade de se lembrar, se não conseguir colocar em palavras. Apenas faça o melhor que você puder. Você vai perceber que a narração é enganosamente fácil. Ela é, de fato, simples de ser requisitada, mas o esforço mental que você tem que fazer ao narrar é grande. 

Não nos esqueçamos, porém, que isso se tornará mais fácil com o tempo, conforme você adquire o hábito da narração e vai se desenvolvendo. 


Quando você percebe o poder que a narração tem na sua mente, fica mais fácil de se comprometer a ajudar o seu filho, ou seu aluno, a desenvolver essa prática porque a narração requer perseverança. Demora um tempo para que você consiga de fato desenvolver essas habilidades e ainda mais tempo para que essas habilidades floresçam em um pensamento maduro e em uma escrita de qualidade, mas esse tempo é bem investido porque as consequências futuras desse hábito são enormes. 

 

Para encerrar, segue uma tradução livre do último parágrafo desse capítulo: 

 

“Crianças que são levadas para longas caminhadas todos os dias desenvolvem histamina e resistência para fazer uma escalada. Crianças que são levadas para a piscina regularmente se tornam boas nadadoras. Crianças que passam a semana inteira jogando futebol aprendem as habilidades para jogar futebol. E as crianças que narram consistentemente se tornam pensadores e escritores”. 

 

A prática regular e consistente é tudo de que precisamos para tornar a criança um pensador e um escritor. Não há um treinamento especial, não há truques nem atalhos que tomem o lugar de um hábito consistente e regular de narração. Sejamos firmes! 



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