Uma pedagogia verdadeiramente evangélica

Por Barbara Lores
Não seria bom se Jesus Cristo em pessoa viesse dizer-nos como educar as nossas crianças? Diante de tantas sugestões no feed do Instagram e nos livros que chegam às nossas casas em caixinhas da Amazon, ficamos confusos. Uns dizem para fazer isso, enquanto outros dizem que o melhor mesmo é fazer aquilo. Não seria mais fácil seguir um manual de instruções?
Surpreendentemente, em seu primeiro livro da série Educação no Lar, Charlotte Mason declara ter encontrado um código de educação nos Evangelhos, expressamente estabelecido por Cristo. No entanto, em vez de oferecer um tutorial com o que devemos fazer, as palavras de Cristo se limitam a apontar precisamente as três coisas que não deveríamos fazer, como se a principal coisa exigida das pessoas adultas fosse que elas não causassem nenhum tipo de dano às crianças: Vede, pois, que não ofendais, não desprezeis, não impeçais, nenhum destes pequeninos¹.
Não ofendais
O primeiro dos “três mandamentos” pedagógicos tem seu fundamento em Mateus 18, 6. Na versão em inglês da Bíblia King James, esse trecho diz algo como “Mas qualquer que ofender um destes pequeninos, que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de moinho, e se submergisse na profundeza do mar”. No entanto, essa tradução não é tão comum em português. Para nós, em vez desse “ofender”, é mais comum encontrar na tradução o termo “escandalizar”, que expressa mais claramente o sentido do original em grego, skandalizo, que significa fazer alguém tropeçar.
“As mães sabem o que é eliminar todos os obstáculos do chão quando o bebê corre de cadeira em cadeira, de um par de braços amorosos para outro. O pé da mesa, o brinquedo da criança no chão, que causou uma queda e um choro lamentável, é algo a ser deplorado; por que alguém não o tirou do caminho para que o bebê não tropeçasse? Mas a criancinha está indo para o mundo com passos incertos e cambaleantes em muitas direções. Há causas de tropeço que não são tão fáceis de serem removidas quanto um banquinho ofensivo; e ai daquele que faz a criança cair!”²
A definição tradicional de escandalizar se refere a fazer com que alguém caia em pecado. No entanto, ofender uma criança, na interpretação de Mason, vai muito além disso. Se trata de colocar qualquer pedra no caminho da criança, mas não só no campo da moral. Do ponto de vista fisiológico, um pai que deixe o filho comer só o que quer, ou dormir na hora que escolher, está colocando diante dele pedras de tropeço.
Mesmo na vida intelectual, um educador que exaspere as crianças com leituras áridas e desprovidas de valor literário afasta delas o amor pelos estudos, colocando pedras em seu caminho. Nas palavras de Charlotte Mason, a vida intelectual da criança pode ser destruída logo no início por uma série de lições monótonas e demoradas, nas quais o progresso definitivo é a última coisa que se faz ou se espera, e que, longe de educar em qualquer sentido verdadeiro, entorpecem sua inteligência de uma maneira que ela nunca supera. Muitas meninas, especialmente, saem da sala de aula em casa com uma aversão a todo tipo de aprendizado, uma aversão ao esforço mental, que dura a vida toda, e é por isso que elas crescem lendo apenas romances de mau gosto e conversando o dia todo sobre suas roupas.³
Não desprezeis
Enquanto a “ofensa” consiste em prejudicar as crianças através das nossas ações, ou seja, fazendo o que não devíamos, desprezar equivale a desampará-las por meio das nossas omissões. Desprezamos as crianças quando as enxergamos como algo menos do que aquilo que são: pessoas. É verdade que são pessoas que ainda tem muito o que crescer, cuja ignorância devemos informar e cuja fraqueza devemos apoiar, mas cujas potencialidades são tão grandes quanto as nossas. ⁴
O segundo artigo deste código de educação vem também do capítulo 18 evangelho de Mateus, mas dessa vez do décimo versículo: Guardai-vos de menosprezar um só destes pequenos, porque eu vos digo que seus anjos no céu contemplam sem cessar a face de meu Pai que está nos céus. O leitor notará que aqui mais uma vez os termos usados diferem na tradução para a língua portuguesa, embora desprezar e menosprezar evoquem um sentido similar.
É raro que que alguém, em sã consciência, ouse admitir que as crianças não são pessoas. No tempo de Mason não era assim. Havia quem pensasse que a criança nascia como uma espécie de ostra, e que ainda teria que desenvolver-se até se tornar, por fim, uma pessoa. Ainda que isso soe um tanto impensável para os nossos dias, a verdade é que as crianças continuam sendo desprezadas.
Desprezamos as crianças quando damos a elas qualquer livro baratinho e mal ilustrado porque, afinal, são só crianças! Desprezamos as crianças quando damos a elas o prato descascado ou a xícara sem asa. Mas esse desprezo se estende até às faltas das crianças, como quando alguém repara que uma menininha tem certa tendência a contar mentirinhas e não intervém, porque afinal, “é só coisa de criança... quando crescer isso vai melhorar”.
Não impeçais
A forma mais grave de desprezar as crianças, porém, se enquadra na terceira lei educacional dos Evangelhos; é ignorar e fazer pouco caso de seu relacionamento natural com Deus Todo-Poderoso⁵. Esquecemos de que toda pessoa humana é, como diz a tradição cristã, capax Dei, isto é, capaz de Deus. As crianças, pelo fato de serem pessoas, são capazes de conhecê-lO e de relacionar-se com Ele de modo pessoal.
Assim como não mastigamos para elas as leituras, não devemos pretender que a relação entre elas e Deus vá precisar sempre da nossa interferência. É claro que devemos instruí-las na fé, mas deixando um espaço para que floresça sua própria vida de piedade independente da nossa. “Deixai vir a mim estas criancinhas e não as impeçais (...)” (Mt 19, 14)
Um exemplo disso se dá quando não impedimos as crianças de lerem o texto original das Sagradas Escrituras. Devemos evitar ler adaptações, de modo que as crianças tenham contato com o texto vivo e sejam impactadas por ele. Quando selecionamos versículos ou “contamos do nosso jeito”, acabamos destacando certas partes em detrimento de outras, e aquilo que fala ao coração de uma pessoa não é o mesmo que despertará a atenção de outra.
Outra forma de impedir as crianças de irem até Cristo, é dizer-lhes coisas que não condizem com quem Ele é. Por isso, é fundamental cuidar das primeiras impressões que a criança recebe acerca de Deus. Uma babá ou professora que ficasse dizendo que “Deus castiga” ou que “Deus vai ficar bravo” não ajudaria em nada a fomentar uma relação amorosa entre a criança e seu Pai Deus.
Um pequeno exame de consciência
Enquanto consideramos a pedagogia dos evangelhos, pode ser muito oportuno fazer um pequeno exame de consciência que nos ajude a concretizar um ou dois propósitos de melhora. Abaixo listamos algumas perguntas adaptadas deste site:
Nós mimamos nossos filhos cedendo às suas reclamações mesmo quando sabemos que isso não é bom para eles?
Damos a eles alimentos saudáveis e exercícios, ou os enchemos de doces?
Esquecemos de ensinar aos nossos filhos que, quando dizemos “não”, não estamos simplesmente seguindo nossos caprichos? Eles sabem que somos movidos a isso pela verdade e que também estamos sob autoridade?
Esmagamos sua curiosidade intelectual submetendo-os a aulas monótonas (seja em casa ou na escola)?
Colocamos nossos filhos uns contra os outros?
Mostramos favoritismo?
Fazemos com que eles se sintam valorizados por seu desempenho e não pelo que são?
Nós os colocamos em pré-escolas para serem educados por pessoas que mal conhecemos?
Nós falamos mal deles quando conversamos com outras mães? (Fazemos isso nas redes sociais?)
Nós os deixamos na presença de outras crianças sem supervisão, sem saber quais vulgaridades e maus hábitos eles estão aprendendo, porque queremos nosso “tempo necessário longe deles”?
Fazemos pouco caso de suas falhas, adiando a disciplina, esquecendo que, se não forem eliminadas agora, elas serão um obstáculo para o sucesso nos anos posteriores da vida?
Por fim, nós os impedimos de ver e experimentar a verdadeira espiritualidade?
Nós os submetemos, ainda em uma idade tenra, a instituições que negam a existência de Deus?
Somos hipócritas? Nós os ensinamos a fazer algo que nós não fazemos?
Dizemos que existe um Criador, mas usamos seu nome com raiva?
Referências:
¹ Home Education, página 12. Disponível em Charlotte Mason Homeschool Series (amblesideonline.org)
² Home Education, página 13. Disponível em Charlotte Mason Homeschool Series (amblesideonline.org)
³ Home Education, página 15. Disponível em Charlotte Mason Homeschool Series (amblesideonline.org)
⁴ Trecho do artigo Concerning Children as ‘Persons’, de Charlotte Mason, citado em A Theory of Education in the Gospels (charlottemasonpoetry.org)
⁵ Home Education, página 19. Disponível em Charlotte Mason Homeschool Series (amblesideonline.org)
Texto publicado originalmente na Revista de Outubro de 2024 da Academia Dulcis Domus, disponível gratuitamente na aba "Livraria".