[Contos Politicamente Incorretos] Aprendendo a voar

Confira "Aprendendo a Voar", o primeiro conto da série C.P.I.: Contos Politicamente Incorretos, de autoria de Barbara Lores


***

Era pra ser ontem a consulta com a psicóloga indicada pela escola, mas como o Bruno passou mal tivemos que remarcar. Ainda bem que consegui o encaixe, porque a agenda desses influencers enche rápido, né. Já faz algum tempo que estou adiando essa consulta, mas como ele tem piorado não pude mais postergar.


Nem sei bem por onde começar a contar o que tem acontecido, mas como a escola disse que esse tipo de caso precisa de intervenção imediata é melhor começar a pensar no que vou dizer pra psicóloga. Pelo Maps faltam quinze minutos pra chegar lá.


Ainda bem que vai ser presencial, porque não aguentava mais essas consultas online. Hum... Deixa eu ver. Acho que dá pra começar contando daquele dia, quando cheguei do trabalho e fui buscar o Bruno no integral. Ele estava bem animado, porque era o dia da fantasia para as turmas da educação infantil.


Ah, mas antes, é melhor eu explicar o contexto. Há uns dois anos ele adorava aquele boneco xerife, então decidiu que devíamos chamá-lo de Woody. Depois, veio a onda do dragão e ele resolveu que se chamava Soluço. De uns tempos pra cá tem me pedido insistentemente que eu o chame por outro nome, Clark Kent. Eu nem sabia que esse era o nome verdadeiro do super-homem, mas ele aprende de tudo na escola.


Então, voltando ao assunto, no dia da fantasia o Clark vinha arrastando sua mochila da liga da justiça com um sorriso de orelha a orelha que fazia craquelar a pintura facial de super-homem.


– Mãe! Hoje foi o melhor dia da minha vida!

– Ah, é? Como foi seu dia, filho? – Abracei-o.

– Me chama de Clark Kent, tá bom? – Ele sussurrou.

– Claro, Clark Kent. – Disse em alto e bom som – Desculpa, eu esqueci! – Sussurrei de volta com olhar de cumplicidade.

– Hoje terminei meu treinamento de herói. Estou preparado para voar!

– Parabéns, fil... Clark! – Aplaudi.

– Está vendo essa capa? Ela é de verdade.

– Que legal! É bem bonita mesmo. Vamos pra casa? Estou pensando em fazer uma pipoquinha com manteiga pra você comer enquanto assiste ao super-homem. Claro que a capa dele não é tão sensacional quanto essa, afinal é só um desenho. A sua é de verdade, né?

– É, sim!


Foi estranho o caminho pra casa depois disso. Ele estava meio quieto, pensativo eu diria. Não pediu pra ouvir a música tema de nenhum herói no Spotify. Enquanto subíamos o elevador até o décimo oitavo andar, ficou só mexendo na capa, analisando a costura.


Chegamos em casa e, depois do banho, ele foi direto pra sala encontrar o pote de pipoca quentinha que já estava esperando no sofá. Antes de ligar o desenho, porém, veio até mim:

– Mãe, você tem medo de que?

– Hum... Não sei, filho. Disse, enquanto terminava de colocar o arroz no fogo.

– É Clark, mãe. – Suspirou.

– Verdade. Desculpe Clark, esqueci de novo... É que essa hora minha cabeça já não funciona mais tão bem.

– Você tem medo de altura?

– Ah... Tenho, eu acho. Sei lá, acho que já me acostumei com esse apartamento. No início eu achava esquisito ir até a varanda, não gostava... Mas, a gente se acostuma com cada coisa, né? Hoje em dia acho normal.

– Eu tenho muito medo de altura, mãe.

– Sério, filho? Mas, você sempre vai até a varanda, senta no chão pra brincar de lego e tudo...

– Eu também não sabia que tinha esse medo, mas agora acho que ele sempre esteve lá. Não sei explicar. Acho que não vou conseguir voar.

Sequei as mãos no pano de prato e virei pra ele, que estava visivelmente preocupado.

– Filho, que bobagem. Eu acho que você está levando muito a sério essa brincadeira.

– Clark! – Disse ele num ímpeto de fúria que derrubou de um só golpe as lágrimas que seus olhos vermelhos não eram mais capazes de conter  – O meu nome é Clark Kent!

Ele saiu batendo as portas e, depois daquele dia, o Bruno não me chamou mais de mãe.


Faz uns três meses que isso aconteceu, e desde então tenho notado meu filho cada vez mais introspectivo, calado mesmo. Ele nunca foi desse jeito. Mas, olha, eu acho que é só comigo... No colégio ele continua bem comunicativo. Aliás, ontem quando fui buscá-lo percebi que a professora me olhava com certo desdém enquanto eu desejava o meu já tradicional "Boa aula, Bruninho!" Ela sacudiu a cabeça e deu de ombros para depois saudá-lo com seu inovador "Bem-vindo, Clark!"


Acho estranho incentivarem tanto essa brincadeira dele, afinal a semana da fantasia já passou faz tempo e ele continua usando aquela capa vermelha. Disseram até que vão incluir no uniforme! Lembro que na minha época não era assim, não. Minha mãe dizia que eu tinha que ir a escola pra aprender a ser gente, mas parece que isso está meio ultrapassado. Formar gente é pouco pra essa nova geração de professores. Bom mesmo é formar heróis.


Eu até entendo que esse mundo precise de heróis, mas nunca pensei que meu filho seria "o escolhido". Até dizer isso soa engraçado, mas é rir pra não chorar. Acredita que outro dia a coordenadora me disse que não foi o Clark que escolheu ser herói? Falou que não é uma opção. Segundo ela, algumas crianças nascem assim e eu não posso ficar tolhindo meu filho, impedindo-o de voar.


Eu acho uma palhaçada esse negócio de incluir capa no uniforme. Já falei com a secretária, com a coordenadora, com outros pais no grupo do WhatsApp... Parece que não entendem. Todos são unânimes e concordam com as mudanças. Espontaneidade é o que conta, vamos incentivar a criatividade das crianças. Sei. Acho que todo mundo nessa escola me olha como uma espécie de tirana e, pra ser sincera, às vezes me pergunto se não seria verdade. É aquela história: quando nasce uma mãe, nasce uma culpa.


Enfim, já está quase na hora da consulta. Ainda bem que não atrasei. Aqui estou eu, subindo o elevador para conversar com uma psicóloga sobre o meu filho que insiste que é o super-homem. Vamos lá. Seria bom se o Bruno estivesse aqui também, talvez a psicóloga pudesse me ajudar a explicar pra ele que existe certa distância entre o que imaginamos e a realidade.


O problema é que a direção do colégio foi taxativa: eu devia vir sozinha enquanto ele participava da oficina de autoconhecimento de quinta-feira a tarde. É pra criança descobrir quem é, "suas aptidões e potencialidades", dizem. Inventam cada uma! Tem três meses que esse projeto começou e ainda não notei nenhuma mudança. Minto. Ele começou a imitar o sotaque da professora, que é paulistana. Preferia que ele estivesse aprendendo inglês, mas... Ih, chegou minha vez.


Por trás dos óculos vermelhos, me aguarda ansiosa a Dra. influencer, com mais de 100K seguidores no currículo. Estou confiante que agora alguém vai entender o que estou dizendo.

– Bem-vinda, mãezinha! – Já começou mal. Detesto quando me chamam de mãezinha. Meu pai já dizia "dê um real, mas não dê intimidade".

– Bom dia, Dra. Novelle.

– Como está se sentindo mãezinha?

– Tudo indo... Vim por indicação do Colégio Antonio Gramsci. Meu filho está tendo alguns problemas de comportamento e preciso de ajuda pra conduzir melhor a situação.

– Certo... Que tipo de problemas?

– Mudou de nome, quer que todo mundo chame ele de Clark Kent. Inventou que é o super-homem, só tira a capa pra tomar banho... Se recusa a me chamar de mãe e, pra você ter uma ideia, ontem mesmo ele disse que não pode comer qualquer coisa verde, porque essa cor indica contaminação por criptonita!

– O quanto isso incomoda você?

– Bastante! E o pior é que parece que só eu estou vendo isso.

– Querida, eu entendo. Deve ser muito difícil pra ele. Que bom que você está aqui para encontrar ajuda. Vamos vencer isso juntas.

– Obrigada, Dra.

– Você sempre manifestou essa fobia de heróis?

–Han? Não, eu... Não sei se compreendi, mas não tenho medo de heróis, não.

– Veja, o primeiro passo para a cura é verbalizar. Precisamos chamar sua doença pelo nome certo: Heroifobia.

– Eu não tenho nada disso. Vim procurar ajuda pro meu filho, ele...

– Vejo que você ainda está na fase da negação. – Interrompeu ela – Assim não faremos muito progresso, mãezinha. Eu estava com uma expectativa alta, afinal não é toda mãe heroifóbica que busca terapia para aceitar o filho como ele é.

– Como posso aceitar que meu filho perca a noção da realidade?

– A realidade é uma construção social. Pare de tentar reproduzir o seu modelo ideal de comportamento na vida do seu filho. Você não acha que a sociedade já é um ambiente hostil demais para heróis como ele? Dê seu amor, seu carinho, não rejeite mais ele... É só uma criança precisando do seu apoio.

– Eu amo meu filho, não tenha dúvidas. E dou todo o meu apoio quando ele precisa. Nesse caso, acho que a melhor forma de apoiá-lo é mostrar a ele quem ele é de verdade. A escola deveria estar ajudando nisso.

– Você precisa compreender que a identidade do seu filho deve ser acolhida e respeitada, mesmo que não esteja alinhada à sua visão de mundo.

– Acho que vocês não estão entendendo o que está acontecendo. Ele é uma criança criativa, já se identificou com outros personagens antes, essa história de Clark Kent vai passar.

– Quantos anos ele tem?

- Cinco!

- Tão pequeno e tão decidido! É uma pena que você continue reproduzindo essa mentalidade binária.

– Dra., eu respeito a liberdade das consciências, mas meu filho não tem maturidade pra escolher ser herói.

– Não se trata de uma escolha. Ele sempre foi herói, só não tinha tornado pública a sua identidade. Pelo que estou vendo, ele devia ter medo de que você não o aceitasse.

– Mas, eu já disse que ele se identificou com vários personagens antes desse... Se ele quiser ser um cachorro devo passar a alimentá-lo com ração?

– Claro que não. Não precisa exagerar. Veja, as rações são muito industrializadas. Sugiro uma opção mais natural, orgânica. Você conhece a Veganimal? A dona é uma amiga minha. Recomendo muito.

– Vou lembrar desse nome - Me levantei e peguei a bolsa. - Muito obrigada Dra., mas preciso ir buscar o Clark Kent agora.

– Isso, esse já é um ótimo primeiro passo. Chame-o como ele gostaria de ser chamado. Até mais!


Até jamais. Enquanto desço o elevador sinto minha cabeça girar. Será que loucura pode ser contagiosa? Está na hora de ir buscar o Bruno. Tem algo de muito errado nisso tudo. Meu Deus, me ajude a salvar meu filho dessa gente. Chego no colégio. Mandam chamar o Bruno, mas não o encontram na sala. Deve estar no banheiro. Aguardo. Nada ainda. Dizem que vão procurá-lo no parquinho. Nada lá também.


Ignoro as sugestões de que eu espere na recepção. Subo as escadas. Não está nessa sala. Nem naquela. – Bruno?! Filho?! – Já olhei todo o corredor. Subo mais dois lances de escada. Nada. Só falta o último andar. Já estou correndo pelo corredor escuro quando vejo no final um pano vermelho na janela da última sala. Me detenho. Meu coração está na boca, mas não posso emitir nenhum som que possa assustá-lo. A janela está aberta e sem rede de proteção.


Os pés do meu menino já se apoiam no parapeito enquanto seus olhos fechados tentam impedir que o medo atrapalhe seu voo. Eu me aproximo em silêncio e abraço com energia as suas costas, arrancando-o da janela. Suas mãos frias de suor tentam se desvencilhar de mim, mas desço as escadas com ele nos braços e o coloco no banco de trás do carro, sob o olhar atônito das professoras. Tiro a capa do Bruno e atiro pela janela. Estamos indo pra casa.


***


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